Artigo de opinião, de minha autoria, recém publicado na Revista Insight/Inteligência, edição 67/2014, e que depois tornou-se tema de pesquisa que venho realizando com o graduando em Direito na UFLA e monitor da disciplina de Ciência Política - Alexander Beltrão - sobre os direitos políticos dos analfabetos.
Esta edição de Inteligência traz também um excelente artigo do
historiador e cientista político, Pierre Rosanvallon, que, na opinião de
Luis Felipe Miguel, é um dos principais nomes da contemporaneidade a
pensar a democracia.
Ver em: http://www.insightinteligencia.com.br/index.asp
Abaixo o texto na íntegra:
O voto dos iletrados
Quando,
em 1889, determinados grupos políticos decidiram instaurar por aqui uma
república, o que se alardeava é que era preciso promover a liberdade individual
e a participação cidadã. Mas nossos republicanos não julgavam, todavia, que
esse novo governo devesse ser um governo rigorosamente de "todos" ou
de "muitos", mas somente dos "melhores".
O
político mineiro Teófilo Otoni, por exemplo, bradava pelos quatro cantos pela
criação de uma república no Brasil. Defensor dos “princípios democráticos”
contra o poder arbitrário de D. Pedro II, ele, todavia, imaginava uma
democracia bem específica: “a democracia pacífica, a democracia da classe
média, a democracia da gravata lavada, a democracia que com mesmo asco repele o
despotismo das turbas e a tirania de um só” (Otoni apud Lynch, 2011).
Assim,
a essa época, muitos liberais e conservadores brasileiros concordavam num ponto:
a participação política do povo era, em geral, indesejada e vista com profundo
receio e temor, pois gera crises, ao trazer a paixão e a opinião, próprias às
massas, para a esfera pública.
Durante
boa parte do Império, a despeito dos cinco diferentes sistemas eleitorais
adotados entre 1824 e 1889, vigorou a exclusão política dos pobres, ou melhor,
dos que não podiam comprovar renda. Todavia, curiosamente, em quase todo o
período mencionado, os analfabetos puderam votar. Somente em 1881, com a
chamada Lei Saraiva, cujo redator foi Rui Barbosa, tal permissão chegou ao fim.
Pleiteando aumentar o rigor da legislação para coibir as fraudes eleitorais tão
recorrentes (e o fenômeno típico dessa época, o das “Câmaras unânimes”), a
referida lei promoveu igualmente uma marginalização ainda maior de qualquer
forma de participação popular. Sobre isso, pondera Jairo Nicolau:
Quando
se compara o número de votantes do começo da década (1873) com o de eleitores
após a promulgação da lei (1882), observa-se um declínio acentuado (87%): o
eleitorado inscrito passou de 1,1 milhão para 142 mil eleitores (2002, p. 24).
Dez
anos depois, deposto o rei e expulsa a sua família do país, a primeira Constituição
republicana acabou enfim com o voto baseado na renda, além de ter diminuído de
25 para 21 anos a idade mínima para se poder votar. Entretanto, revelando
afinidades políticas mais profundas com o passado que combatia, a nova
Constituição decidiu manter a referida inovação institucional, de modo que
aqueles que "não soubessem ler e escrever" (Nicolau, idem, p. 26) estavam terminantemente impedidos
de votar.
Não
é, entretanto, correto afirmar que não haviam vozes dissonantes nesse debate. O
deputado federal José Bonifácio de Andrada e Silva, por exemplo, afirmava que
"não é dos iletrados e analfabetos (...) que procediam
os vícios das
eleições: era dos emboladores
de chapa, dos
manipuladores, dos cabalistas,
dos calígrafos" (Bonifácio apud Aleixo
e Kramer, 2010, p. 69). Bonifácio "o moço", como era conhecido, já àquela
época esclarecia que a política, diferentemente de outras áreas que supõem uma
competência especial, não exige a alfabetização e concluía: "a leitura e a
escrita são meios de instruir-se, mas em si mesmos não aumentam o discernimento
do homem e muito menos dão bom senso a quem não tem" (ibidem, p. 70).
Outro
exemplo de que a questão da participação política dos analfabetos já dividia as
opiniões desde antes da República é a obra de José de Alencar, político, como
Bonifácio "o moço", associado pela historiografia ao campo
conservador. No contexto do Segundo Império brasileiro, marcado por baixa
participação política, prevalência das oligarquias regionais, corrupção,
fraude, escassa institucionalização política, etc., o autor de Iracema defendia a adoção do sufrágio universal e do sistema de representação
proporcional (a fim de garantir a representação das minorias), como formas de
organização da opinião pública e, como se vê, não admitia qualquer tipo de
desigualdade política entre os cidadãos, ainda que fosse favorável à manutenção
da escravidão (Santos, 1991).
De qualquer modo, proclamada a República
brasileira, ao invés de se ampliar a participação política, manteve-se o
eleitorado em um patamar médio inferior a 5% da população (em algumas eleições,
índices até mesmo menores do que nos tempos do Império), já que a essa época em
torno de 80% da população era composta de analfabetos. Assim, em 1912, por
exemplo, o comparecimento eleitoral foi tão-somente de 2,6% da população.
Outra
razão para que um ínfima minoria fosse responsável por determinar os rumos da
nação foi a exclusão das mulheres. Embora a Constituição de 1891, em seu artigo
de número 70, sobre quem poderia se alistar, não declarasse explicitamente nada
a esse respeito, julgou-se, conservadoramente, que o silêncio da lei, no caso,
só podia significar a manutenção do status
quo.
Embora
possa parecer contraditório a República ter sido marcada nas suas primeiras
quatro décadas por baixíssimos índices de participação popular, não o é, pois,
como dissemos, a “democracia” não era pensada como coisa pra qualquer um, nem
pelos “republicanos”, nem pelos “conservadores”, saudosos então do velho regime.
Não se deve, entretanto, imaginar que tal resultado tenha sido um efeito não previsto
de nossos republicanos. Ao contrário, mais razoável é supor que o requisito
educacional servisse para nossas elites políticas como um bom substituto para a
barreira de renda, então extinta, a fim de continuar impedindo a inclusão das
classes populares no processo político.
Tal
padrão político oligárquico manter-se-ia inalterado até a Revolução de 30,
quando algumas inovações institucionais contribuíram para a promoção da
participação política. Curiosamente, Getúlio Vargas - cuja morte completa agora
60 anos - qualificado reiteradamente pela imprensa brasileira como ditador e
populista, foi o grande responsável pela primeira onda de inclusão política no
país. Não foi à toa que os míseros índices de comparecimento eleitoral, do
Império à Primeira República, só foram superados a essa época.
O
século XX, não só no Brasil, mas em alguns outros países do orbe, viram, cada
qual a seu modo e a seu tempo, alguns dos obstáculos aos direitos políticos
serem eliminados ou modificados (idade, renda, gênero, etc.), não pela ação da
Graça divina, mas pela pressão de grupos que entendiam que sua marginalização
era injustificável.
Esse
caminho também longe esteve de ser uma linha reta em direção à uma democracia
cada vez mais sólida: basta lembrar que o mesmo Getúlio que a partir de 1932
estabeleceu o voto secreto, os direitos políticos das mulheres e a Justiça
eleitoral como responsável pela organização geral dos pleitos (retirando dos
próprios candidatos essa função, e contribuindo decisivamente para o fim do
“voto de cabresto”, da “degola”, do “fósforo” e das “eleições a bico de pena”,
isto é, as diferentes formas de falsificação dos pleitos nacionais), cinco anos
depois, decretou o fechamento do Congresso, o fim dos partidos e suspendeu as
eleições, dando início ao Estado Novo.
Contando
que a exclusão dos analfabetos no Brasil inicia-se em 1881 (com a Lei Saraiva,
referendada dez anos depois pela nova Constituição), é preciso destacar que passamos
mais de cem anos privando-os de seus direitos políticos plenos, haja visto que
somente em 1989 eles passaram a votar para todos os cargos da República.
Melhor
dizendo, uma emenda constitucional promulgada em 1o de julho de 1985
(a de no 25) já previa o direito de voto aos analfabetos, de modo
que eles já puderam exercê-lo nas eleições municipais de 1985. Assim, é preciso
dizer que a Constituição de 88, ao contrário do que normalmente se pensa, não
inovou nesse aspecto. Comparando o Brasil a outras nações no que tange ao
direito de voto dos analfabetos, Nicolau afirma:
As
exigências de alfabetização ou de certa escolaridade para ter direito de voto
foram pouco frequentes na história eleitoral de outras democracias. Na Europa,
apenas Portugal condicionou o direito de voto à alfabetização, exigência que
foi banida em 1974. Já na América Latina, em muitos países os eleitores eram
obrigados a saber ler e escrever para poderem votar. A abolição da exigência de
alfabetização para o sufrágio ocorreu na seguinte ordem: Uruguai (1918),
Colômbia (1936), Venezuela (1936), Bolívia (1952), Chile (1970) e Peru (1986). O Brasil foi o último país a permitir o
voto dos analfabetos (2002, p. 62, grifos nossos).
Como
em relação à abolição da escravidão, o país dava mostras de seu elitismo
arraigado, apesar de todo o discurso liberal e democrático a vigorar por aqui. Mas
engana-se redondamente quem imagina que tais preconceitos elitistas são,
doravante, coisas do passado.
A
Carta "cidadã", ainda hoje a regular o processo eleitoral do país,
prevê que o alistamento eleitoral e o direito efetivo de votar (chamada de “cidadania
ativa”) é facultativo aos analfabetos (diferentemente da maioria do eleitorado
nacional) e - o que é mais importante - considera-os, todavia, inelegíveis; eles não possuem, destarte,
a dita "cidadania passiva", não podendo ser votados. Em outras
palavras, na incrível onda de redemocratização que varreu o país, das “Diretas
Já” à Constituinte de 86, considerou-se os analfabetos aptos à vida política,
mas apenas parcialmente. Cidadãos, portanto, de "segunda classe".
O
caráter paradoxal de semelhante categoria reforça-se pelo fato de que eles
compõem o único grupo social alistável,
mas inelegível pela atual legislação.
Para agravar esse quadro, sendo o voto facultativo aos analfabetos, eles passaram
a ser incluídos no mesmo grupo dos idosos (cidadãos com mais de 70 anos). Pergunta-se:
por acaso esses últimos não podem ser eleitos? Se assim o fossem, não
poderíamos ter reeleito, em 1990, um dos maiores expoentes da redemocratização
do país, Ulisses Guimarães ao Congresso Nacional. Por que então equiparar a
condição de um analfabeto ao do idoso?
Além
disso, cumpre dizer que os analfabetos tem acesso a todo o catálogo de direitos
civis e sociais, podendo comprar e vender imóveis, contrair matrimônio,
empregar-se e ter empregados e, o que é mais curioso, podem votar e serem
votados para os cargos de sindicatos, segundo o artigo 529 da Consolidação das
Leis Trabalhistas (CLT). A despeito de serem considerados como indivíduos
plenamente capazes de discernimento (não sendo, portanto, um caso jurídico de
menoridade), e, inclusive, tendo que cumprir com os deveres de quaisquer
cidadãos (como o pagamento de tributos), resta, como um resquício incólume de
nosso passado oligárquico, a inegibilidade dos analfabetos.
Considerando
que, segundo dados do IBGE de 2013, o Brasil conta com aproximadamente 13
milhões de analfabetos, indaga-se: qual é o impacto político do artigo 14 de
nossa Constituição (e da Lei Complementar no 64 de 1990, que a
regulamentou), que determina que o analfabetismo seja um dos fatores de
inegibilidade? Mais: em regiões brasileiras como o Nordeste, por exemplo, que
concentra 54% dos analfabetos do país, o que significa semelhante escolha política?
O que ocorreria ao país aumentar em mais de dez milhões possíveis candidatos
aos cargos públicos?
Como
bem notou o cientista político brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos, em
democracias contemporâneas, a grande disputa se dá em torno não de quem são os
eleitores, mas em relação a quem são elegíveis (o que ele chama de eixo do "controle").
Sendo extremamente custoso retroceder e limitar o número dos que podem votar (o
eixo da participação), em contextos em que tal direito já foi conquistado, a
grande estratégia de certos grupos que disputam o poder é restringir o número
dos que podem ser votados. Assim, comumente proíbe-se candidatos sem vínculo
partidário, eleva-se a idade mínima para a elegibilidade para certos cargos e,
o caso aqui discutido, determina-se que aquele que o iletrado não possa
concorrer a uma eleição.
E
por que fazer isso? Como no mercado econômico, na disputa eleitoral, quanto
menor o número de adversários, maior a chance de cada qual ser eleito. Nesse
sentido, esclarece Santos, a democracia é (e deve ser cada vez mais) a antípoda
da oligarquia, assim como a livre concorrência o é do oligopólio no plano
econômico. Ela deve ampliar ao máximo a competição não violenta pelo poder, institucionalizando
a contestação pública e incluindo nela o maior número de indivíduos, o que, por
sua vez, acarreta a valorização do voto de cada um e aumenta as possibilidades
de escolha do cidadão (Santos, 1998).
Passados
quase trinta anos da Constituição de 88 e de funcionamento regular da democracia
brasileira, o debate sobre os direitos políticos dos analfabetos, todavia,
ainda não foi retomado seriamente no país. E quando se trata de discutir quem
deve participar ativamente do governo, a questão sobre que atributos são
considerados como requisitos indispensáveis se apresenta com centralidade. Em
resumo, quem tem condições de participar da política? Aqueles que sabem (e
sabem o quê?), os que tem informação, os que são escolarizados? Mas como tal
saber qualifica o cidadão para a vida política?
É
verdade que muitas das teorias democráticas supõem que um cidadão bem informado
é um elemento necessário para o bom funcionamento do sistema político.
Crítico, vigilante, ciente dos debates públicos, esse é o cidadão esperado (mas
muitas vezes não encontrado) em uma democracia. Tanto o é que as democracias
com frequência determinam que todo cidadão deve ter acesso gratuito ao ensino
de qualidade; que a educação deve ser promovida pelo Estado, compreendida como
instrumento necessário ao pleno exercício da cidadania e, portanto, seja um “direito
público subjetivo”, quer dizer, que deve ser imediatamente oferecido pelo
Estado por exigência do cidadão, quando o primeiro falhar em ofertá-lo
espontaneamente.
Não
deixa de ser curioso que, no Brasil, ao mesmo tempo em que se reconhece publicamente
a histórica incapacidade de prover a todos(as) esse bem público primordial,
proíbe-se, ademais, os carentes dele ao ostracismo cívico. Não apenas não
erradicamos o analfabetismo (a despeito das diversas Campanhas de alfabetização
realizadas no país desde os anos de 1940), como excluímos (ao menos
parcialmente) os que dele padecem da vida pública. O Estado cobra a
alfabetização como um dever do cidadão, mas falha sistematicamente em garantir
o seu direito constitucionalmente assegurado à educação pública.
No
entanto, se é comum entender que uma democracia pressupõe cidadãos bem
informados, não se sabe ao certo que "saber" é esse que ele deve
possuir. Longe de ser questão trivial ou recente, esse é um dos temas mais
caros à filosofia política, desde sua fundação no Ocidente.
Platão,
por exemplo, em sua República, criticava a política por basear-se
excessivamente nas opiniões do vulgo, da maioria. Baseando-se em sua concepção
tripartite da alma humana, o filósofo afirmava que assim como a parte racional
deve comandar as partes apetitiva e irascível, o "rei-filósofo", um genuíno
"amante da sabedoria", teria o legítimo direito de governar os
artesãos e os soldados. A partir de uma concepção em que a melhor forma de
governo (politeia) consiste num
governo dos "melhores", Platão procurou instruir pessoalmente o
tirano Dioniso, que, como nos conta o anedótico doxógrafo Diógenes Laêrtios,
acabou vendendo o notório pensador como um escravo qualquer.
Ao
contrário de Platão, com quem estudou por duas décadas na Academia, Aristóteles
diferenciava a sabedoria sobre a política - isto é, a ciência desenvolvida
sobre a comunidade - e a virtude mais importante da prática política, a
prudência, isto é, a capacidade de agir no momento oportuno. Desta forma, segundo
o filósofo de Estagira, um grande sábio nesses assuntos pode ser, ao mesmo
tempo, um péssimo ator político, pois possui apenas sabedoria, mas não
necessariamente as virtudes necessárias para uma ação exitosa.
Aristóteles,
ao contrário de seu mestre, assevera que a política não é propriamente o espaço
da verdade e da sabedoria, mas da opinião, do que "aparenta ser" para
cada um dos cidadãos da polis, sem
que isso seja compreendido como um defeito da política. Não é, consequentemente,
uma arte na qual reina a competência, como a medicina ou a engenharia e que prevê
a existência de um expert, mas uma
arte, como a culinária, na qual o ponto de vista do governado deve prevalecer
sobre do governante (Wolff, 1999).
Pensando
em nossos dias, pode-se dizer que se o conhecimento técnico da economia, das
políticas públicas, etc., é cada vez mais fundamental em sociedades modernas, para
instruir o cidadão em sua decisão, ele não pode, entretanto, substituí-lo em
sua escolha.
Além
disso, é preciso considerar que quer uma eleição, quer mecanismos de
participação direta, como plebiscitos e referendos - tipicamente utilizados nas
democracias representativas contemporâneas - não determinam a verdade sobre a
política. O candidato ou a política escolhida não é necessariamente a melhor
escolha, a mais verdadeira, etc., mas tão somente aquela que corresponde à
preferência de parte significativa do eleitorado. Nesse caso, alfabetizados e
analfabetos estão no mesmo patamar: a princípio são portadores de preferências
igualmente legítimas, de modo que todas elas devem se tornar públicas e obter
algum tipo de representação.
Há
ainda uma terceira corrente de opinião a respeito do tema da educação e dos
direitos políticos, segundo a qual não apenas não existe um saber específico a
servir como pré-requisito à participação política, como também acrescenta que a
exclusão de qualquer um, produz mais prejuízo do que benefício público. O
argumento, no caso, incide menos sobre a polêmica se é preciso saber para, então,
participar, e mais sobre as consequências da não participação.
Embora
fosse receoso quanto à inclusão dos iletrados na vida pública inglesa
oitocentista, o filósofo e parlamentar John Stuart Mill, por exemplo, afirmava
que era preciso consolidar o sufrágio universal, na medida em que a
participação cívica promove o desenvolvimento do indivíduo, ao passo que a sua
proibição contribui para o seu embotamento moral e crescente marginalização. Em
suma, o que Mill afirma é que, participando da política, os cidadãos se tornam
melhores, mais capazes de tolerar, argumentar e de considerar as razões e as
escolhas dos outros.
Nesse
sentido, podemos utilizar a filosofia de Mill contra a sua própria posição
pessoal: mesmos os analfabetos, assumimos, são os melhores "guardiões de
seus interesses particulares", e a limitação de seus direitos políticos
não favorece o seu desenvolvimento e a superação de seus obstáculos pessoais;
antes os fortalecem.
Uma
outra seara de debate que não pode ser desconsiderada no tocante a esse
assunto, diz respeito à própria definição de analfabetismo. "Nada saber
ler e escrever", "capaz não apenas de escrever o próprio nome, mas
também de ler", “que não conhece o alfabeto”, etc. são apenas algumas das muitas
expressões utilizadas para descrevê-lo, nem sempre coincidentes (AURÉLIO, 1996).
A ausência de um conceito unívoco desse fenômeno, a fundamentar o direito
brasileiro, produz paradoxos evidentes como aquele em que considera-se um
analfabeto capaz de ser um dirigente sindical, mas inepto para se tornar um
vereador.
É
preciso também lembrar que correlata a essa indefinição do fenômeno, há o
problema do chamado "analfabetismo funcional", isto é, aqueles que, a
despeito de terem ingressado na escola, são incapazes de interpretar textos que
apenas veem, mas não compreendem. Pergunta-se: como diferenciá-los dos
analfabetos "absolutos"? E por que proibir os segundos ao direito de
serem representantes da população, mas não os analfabetos funcionais que,
segundo o censo mencionado do IBGE, compreende em torno a 18% da população
brasileira com idade de 15 anos ou menos? Como justificar essa escolha sem uma
distinção substantiva entre esses dois grupos?
As
diversas gradações da alfabetização, bem como a equivocada identificação entre
ela e a sabedoria, ou o conhecimento, relegando ao limbo a cultura oral e
popular que forma o Brasil, muito antes do seu processo de colonização, está
associada aos variáveis e contestáveis métodos de aferição de alfabetização dos
candidatos. O que, de fato, tem ocorrido é que, na ausência de um padrão de avaliação
de alfabetização, tem imperado o arbítrio e o casuísmo, segundo o qual brasileiros,
mesmo que intensamente sufragados pelo povo, podem não ser diplomados, pois tem
que se submeter a um juiz eleitoral que, curiosamente, tampouco possui formação
específica para julgá-los nesse quesito.
O
que se quer destacar aqui é que, de alguma maneira, tudo se passa como se as
razões para a cidadania "pela metade" de nossos cidadãos analfabetos
já estivessem bem assentadas, quando não estão. Não deve se deve igualmente esquecer
que se decidir sobre esse tema (mantendo ou não o seu ostracismo político, a
somar-se às outras exclusões a que eles já estão habitualmente submetidos) não
é algo a ser realizado por critérios técnicos. Trata-se, ao contrário, de uma decisão
política, uma escolha por valores, e tal decisão sempre irá supor o
assentimento com uma certa visão sobre a natureza da política e sua relação com
o conhecimento e a verdade.
Para
concluir, cumpre dizer que em meio a tantas propostas de reforma política
apresentadas desde a Constituição de 88 - tais como adoção do parlamentarismo,
do voto facultativo, da cláusula de barreiras, do voto distrital, etc. -
raramente a elegibilidade dos analfabetos é lembrada.
A
PEC (Proposta de Emenda Constitucional) de número 27, de 2010, de autoria do
senador Magno Malta (PR/ES) que sugere essa alteração na legislação brasileira
está, desde 2011, aguardando a designação de um relator na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Na referida PEC, argumenta-se de
variadas formas contra essa injustiça, concluindo que "a nossa batalha
deve ser contra o analfabetismo, não contra o analfabeto" (PEC 27/2010, p.
7).
Concluindo,
ao que parece, carecemos de justificativas razoáveis para manter as coisas como
estão, quer pela imprecisão conceitual de "analfabetismo", quer pela
cidadania parcial concedida a eles, produzindo uma figura jurídica esdrúxula. Mais
do que isso, é preciso considerar que conceder a eles o direito de voto, mas
negar o direito de ser votado constitui uma forma de não reconhecimento deles
como iguais, contrariando o princípio básico da cidadania que é o da isonomia,
assegurado pela Constituição vigente.
O
caso do palhaço Tiririca, candidato mais bem votado na eleição de 2010 para a
Câmara dos Deputados (e reeleito recentemente), exemplifica paradigmaticamente essa
forma de desrespeito. Depois de conquistar mais de um milhão de votos, o
deputado federal mais sufragado pelo estado de São Paulo, teve que, diante de
um juiz do Tribunal Regional Eleitoral, se submeter a um ditado como se fosse
uma criança no colegial, copiando um parágrafo ditado de um livro qualquer de
Direito e lendo duas notícias de jornal escolhidas a esmo pelo magistrado.
Ao
cabo, Tiririca foi considerado alfabetizado e, portanto, pode assumir o mandato
a ele concedido pelo povo, único soberano na democracia brasileira. No entanto,
cumpre imaginar um resultado adverso para o nobre palhaço: será, então, que um
exame de alfabetização, realizado por um bacharel de Direito, seria motivo legítimo
para tomar desperdiçar mais de um milhão de votos depositados nas urnas por cidadãos
brasileiros?
Longe
de desmerecer a educação formal, bem como os programas governamentais de
combate ao analfabetismo, o que se sugere é que talvez estejamos a praticar
aqui mais uma injustiça com quem já sofre com a ausência do Estado.
Há
quem argumente, por outro lado, que não se deve acabar com a inegibilidade dos
analfabetos, mas lutar pela sua educação. A premissa desse argumento é que devemos
optar por uma das duas soluções. Nesse caso, o resultado ulterior é justificar
um erro (a proibição de que sejam eleitos) com outro (a ineficácia do Estado em
assegurar educação a todos). Talvez, ao contrário, uma das medidas mais
eficazes para combater o analfabetismo seria conceder direito o direito de
serem votados aos que dela sofrem, pois isso possivelmente viabilizaria que tal
tema fosse mais contundentemente debatido, bem como objeto de políticas
públicas mais eficazes.
Com
a manutenção de tal impedimento, na realidade, revelamos que a despeito dos significativos
avanços da democracia brasileira nas últimas três décadas, permanecemos, em
parte, reféns de nosso passado oligárquico. Como dizia Oliveira Vianna: "o
passado vive em nós, latente, obscuro, nas células de nosso subconsciente. Ele
é que nos dirige ainda hoje com sua influência invisível, mas inelutável e fatal"
(2005, p. 49). Ao voltarmos nossos olhos para o passado brasileiro, é comum hoje
que nos espantemos com os seus erros, por exemplo, com a exclusão dos pobres e
das mulheres no Império, eles também tidos antigamente como incapazes de
participar da vida pública. O que nos garante que não estamos atualmente a
praticar uma injustiça semelhante com os iletrados da nação? Não será a hora,
então, de reavaliarmos novamente nossas escolhas?
Referências bibliográficas
ALEIXO, José
Carlos e KRAMER, Paulo. "Os analfabetos e o voto: da conquista da alistabilidade
ao desafio da elegibilidade". Senatus,
Brasília, v.8, n. 2, p. 68-79, 2010.
AURÉLIO. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
2a ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1996.
DOWNS, Anthony. Uma
teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999.
LAÊRTIOS,
Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos
ilustres. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1988.
LYNCH, Christian
Edward. "Do Despotismo da Gentalha à Democracia de Gravata Lavada:
história do conceito de democracia no Brasil (1770-1870)". Dados – Revista de Ciências Sociais.
Rio de Janeiro: IUPERJ, vol. 54, n. 3, 2011, p. 355-390.
NICOLAU, Jairo. História do voto
no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
SANTOS, Wanderley
Guilherme dos. Dois escritos democráticos
de José de Alencar: Sistema representativo, 1868; Reforma eleitoral, 1874.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1991.
VIANNA, Oliveira.
Populações meridionais do Brasil.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.